Sim, contradiz, pois Saramago era um comunista que conseguiu o Nobel sendo com orgulho comunista; - amava a vida na sua tragetória de humildade, e alertava com suas sábias palavras, aqueles que buscavam a sábia resposta.
Admiradores de José Saramago acompanham velório, na câmara da prefeitura de Lisboa
Foi grande o burburinho em torno da morte do escritor e ativista político José Saramago. As reações que suscitou, porém, da lágrima sincera ao não menos sincero "Já vai tarde", me pareceram privilegiar o ativista político, não o escritor. Este texto é uma tentativa de refletir sobre esse fato.
Ele próprio foi o primeiro a contribuir para isso. Lembro-me de certa afirmação sua, numa das entrevistas que concedeu ao Roda Viva, segundo a qual não era assim tão importante, para um escritor, falar de literatura: ele devia se concentrar em assuntos mais urgentes, como (suponho eu) o conceito de mais-valia ou o imperialismo ianque.
Não serei eu a decidir sobre a verdade ou não dessas afirmações. Mas o fato é que, para o próprio Saramago, a literatura estava subordinada à política. Nada mais natural, portanto, do que sobrepor o ativista ao escritor, a atuação política à ficção literária.
E é precisamente aqui que deparamos com o paradoxo. Pois, na sua atuação como militante comunista, Saramago queria o fim do capitalismo, mas, graças à suas ficções literárias, gozava daqueles bens que só o capitalismo pode proporcionar. A sua militância, portanto, não se entendia muito bem com a sua literatura, e nem sempre aquilo que dizia era aquilo que de fato fazia.
Todos temos lá nossas contradições, umas mais, outras menos produtivas. No caso de Saramago, elas explicam por que, afinal, a sua literatura muitas vezes nos encanta: porque ela não segue à risca as suas posturas políticas, porque ela contradiz o militante, e, no fim das contas, é mais complexa, mais rica e mais interessante que o seu autor. Como toda literatura digna desse nome.
Finalmente, agora é bobagem querer medir com exatidão se, como e o quanto a obra de Saramago 'veio pra ficar' ou 'deve permanecer': pois ela já está aí, é já um dado cultural, e por meio dela a língua portuguesa, tão tímida, ao menos sai um pouco da sombra, não é?
Benditas contradições!
Érico Nogueira
De São Paulo